Rubem Fonseca e seu duplo
Novo romance joga com fama de autor arrediode
Cláudia Nina. Jornal do Brasil, 12/4/03
Enquanto Rubem Fonseca se esforça ao máximo por parecer invisível, fugindo de câmeras e entrevistas, seu duplo, o narrador que lhe serve de alter ego em muitos de seus livros, é indisfarçavelmente um narcisista profissional. Não é novidade dizer que a literatura do autor reflete sobre si mesma (ela também narcisista) e nem que o narrador-personagem inúmeras vezes escreve enquanto é escrito. Também não é novidade que Rubem Fonseca goste de se repetir a cada nova obra. O diário de um fescenino, o mais recente romance, é mais um exemplo de tudo isto: o livro dentro do livro, a reflexão sobre a própria escrita, o narrador exibido e os elementos de sempre - o grotesco, muito sexo, crimes e suspense.
A repetição não diminui em nada a obra. Comparações com livros mais elaborados do autor, como Agosto, Vastas emoções, Bufo & Spallanzani, A grande arte, entre outros, parecem desnecessárias. O que importa é que Rubem Fonseca está de volta. Não aos contos, mas com um texto que faz a mistura de romance e diário. Ou um romance em forma de diário. É bom demais reencontrar aqui o que já se viu antes e reconhecer o traço, as tiradas geniais, o humor e a total liberdade em se mostrar - o narrador, não o autor - despuradoramente no centro de suas próprias atenções. Explica-se por que o narrador e não o autor: O diário de um fescenino, antes de ser algo semelhante às confissões de um sedutor ou às memórias de um obsceno, é uma ardilosa reflexão sobre o autor e os seus duplos; sobre os limites da ficção e a intromissão da arte literária na vida de quem a cria, da própria ficção como rede, em que personagens e criadores parecem atados num mesmo nó.
Quem escreve é Rufus (qualquer relação com o nome do autor é mera distração), escritor de livros sem diálogos, pois, como defende, ''o diálogo é sabidamente um recurso de escritores medíocres''. Um alter ego impiedoso, ingrato e irônico com seu criador, pois raros escritores são tão bons e convincentes nos diálogos como Rubem Fonseca. Ao escrever o diário, Rufus tenta exercitar esse ''pobre recurso'', contando um pouco do que lhe acontece numa rotina povoada de mulheres e traições. Os detalhes calientes dos encontros amorosos ganham, como sempre, um infalível tom de humor perverso, como nos momentos em que descreve os corpos das amadas: ''Henriette me esperava com uma lingerie que imaginava sedutora. Odeio esse tipo de roupa íntima consagrada pela moda e pela mídia, com rendinhas, enfeites, modelos que pretendem ser instigantes deixando um pedaço de bunda de fora, logo a parte mais feia, aquela com sua dobrinha frouxa.(...) A bunda perfeita é uma raridade.''
Mas o diário é só superficialmente o relato de um itinerário amoroso de um cabotino ''espalhador de sementes'', como ele se auto-define. Na verdade, Rufus planeja escrever um Bindungsroman, um romance de formação, algo muito mais nobre e importante do que aquele ''diário chinfrim''. Enquanto o tal romance não acontece, porém, é a confissão mesma que se desenrola. Entre um encontro sexual e outro, Rufus crava uma adaga afiada no escritor-mito e nos responsáveis pela idolatria aos autores. ''Idealizam o idiota que escreve, se apaixonam por um mito, esperam que ele realize seus delírios alegóricos. Os escritores são maus amantes, maus amigos, má companhia.'' Ao mesmo tempo em que utiliza frases de seus próprios livros ao se aproximar das mulheres, tenta se afastar do que escreveu. ''Nada tenho a ver com as coisas que são ditas nos meus livros.''
A reflexão vai ficando mais complexa à medida que Rufus se torna vítima de uma cilada e é acusado de crime de estupro (entra em cena o romance policial) e sua ficha literária recai sobre ele, pois os policiais e os juízes o acusam com base nos delitos sexuais que cometeu enquanto autor de suas histórias. Rufus acusa leitores e críticos de sofrerem de uma doença: a síndrome de Zuckerman, em referência ao personagem de Philip Roth e ao fato de muitos leitores associarem o narrador não apenas a um provável alter ego, mas ao próprio autor, responsável, por transferência, pelos mesmos atos de seus personagens. Rufus dá um recado especial aos críticos: ''Todo leitor padece desse mal, mesmo aquele que tem como profissão a crítica literária.''
Repleto de citações, pinçadas de outros autores que também fizeram suas confissões, reais ou fictícias, O diário de um fescenino é sobretudo um delicioso diálogo entre obras, biografias, personagens e autores duplicados pela escrita. Cotidiano e imaginação: onde termina um e começa o outro? A resposta vem do próprio Rufus: ''Quanto a mim, se não uso a minha imaginação, como neste instante, e falo apenas da realidade, estou sendo simplesmente o rabiscador de um diário, um registrador cotidiano e fidedigno de uma jornada de ocorrências, experiências e observações. Não sou um verdadeiro autor, ao escrever este diário. Literatura é imaginação.''
É claro que um livro de Rubem Fonseca que se preze tem sempre um caso policial no meio. E o narrador-personagem em questão acaba muito enrolado num desfecho crucial. O mais interessante em tudo isso, e o que consagra afinal um autor de estilo próprio, é a capacidade de enredar história e reflexão sem perder um segundo o controle do texto, num comando enxuto e irônico que marca toda obra. Sem firula. Mas também hábil nas palavras para não cair num simplismo frio e distante.
A desconstrução do gênero policial, questionando a própria narrativa ao mesmo tempo em que é escrita, uma das assinaturas de Rubem Fonseca, faz sua literatura duplicar-se, num requintado espelhamento. Mas não só a obra. É o paradoxo do narcisismo: enquanto o autor real mantém-se oculto, arredio e invisível, seus livros fazem o inverso ao homenagearem a si mesmos. Rubem Fonseca é, portanto, um autor duplicado.
No hay comentarios.:
Publicar un comentario